domingo, 27 de fevereiro de 2011

Mondo com Eido Soho
Porque a gente usa uma almofada para sentar?
- Porque a bunda dói se você não usar almofada, só isso.
Porque que a almofada não é baixa, é alta?
- A gente usa almofada para sentar, primeiro porque zazen não é para torturar ninguém. A ideia não é você atingir algum tipo de iluminação através do sofrimento ou da tortura física. A ideia é poder equilibrar realmente a coluna. Então se você não colocar um apoio para a coluna, nem precisa ser uma almofada pode ser um tijolo de poliestireno como se usa nos tempos modernos. O importante é que você possa ter uma elevação do quadril suficiente para sua coluna ficar equilibrada e você poder ter a coluna reta, porque senão não funciona. Se você deixar a coluna direta no chão, com as pernas no mesmo plano, você vai ter uma curvatura da coluna forçosamente, e com a coluna dobrada você não tem zazen, é por isso que se usa uma almofada redonda.
E porque de vez em quando dói o joelho, dói na junta?
Podem haver alguns motivos. Um, é a falta de hábito da postura mesmo. A gente não está habituada a sentar com perna cruzada no chão aqui no ocidente, então, na verdade essa postura para quem é ocidental pode ser meio difícil, você pode ter a junta dura. Você sabe que em chinês uma das palavras que descreve velhice quer dizer “junta dura”, na verdade, então toda ideia do Tai Chi Chuan, do Chi Kung, é você deixar as juntas fluídas para poder a energia te fluir. Então uma das razões é essa: a falta de hábito e para isso é que se preconizam os exercícios de alongamento, como Tai Chi, Chi Kung. Outra razão é que você pode estar sentando errado também, você pode estar sentando numa postura que não seja exatamente equilibrada e aí você precisa talvez da orientação, de uma pessoa que lhe ajude a ver onde é que está o desequilíbrio, porque às vezes sozinho você não pega isso. Às vezes, a altura da almofada não está adequada; às vezes, o chão também está duro, porque normalmente a gente senta em cima de uma coisa um pouquinho acolchoada também, então às vezes, se ficou muito duro, também vai doer. E outra possibilidade, é você ter uma alguma doença articular e até mesmo que você tenha que tratar para poder sentar. E, uma última possibilidade é que você precise sentar na posição ocidental mesmo, o que não é nenhuma tragédia se você não puder sentar de todo de perna cruzada por causa de cirurgia, de malformação, alguma coisa, você senta na posição ocidental. Tem alguns retratos do Buda sentado em posição ocidental.
E quando dói você faz o que?
- Se começar a doer de um jeito suportável para você, você pode observar a dor primeiro. Você pode tentar fazer um pequeno ajuste, um ajuste milimétrico, não é uma coisa de se mexer muito, mas às vezes realmente você pode dar uma ajustadinha na coluna, mudar uma pressão, uma coisa desse tipo. Mas é interessante respirar com aquela dor, porque aquele incômodo muitas vezes tem a ver com uma coisa que na verdade não é física, mas é psíquica também. Tem a ver com angústia, tem a ver com dificuldade de pode ser aquietar, nem sempre tem a ver necessariamente com um problema local. Agora, se de todo doer muito, por exemplo, aí vale a pena você talvez fazer um gasshô, levantar e sair um pouquinho do zendô e ver o que esta acontecendo. Eu já vi gente ter flebite, ficar sentado muito tempo e depois ter um problema sério porque na verdade se doer demais tem alguma coisa muito errada. Se for uma dor suportável, você tenta ajustar.
E a dormência? Ocorre com frequência?
- Frequentemente. Porque a dormência, na verdade, tem a ver às vezes com pressão vascular quando você senta e o osso comprime os vasos, aí você começa a ter uma má circulação, às vezes é questão de um pequeno ajuste. Mas no começo essa dormência é freqüente, acontece com todo mundo. Aliás, por falar nisso, no começo acontece sempre dor, dormência, muito incômodo na postura. Mas é aquilo que a geste estava conversando, quer dizer, na verdade, o zazen no começo frequentemente traz mais incômodo do que bem estar, na verdade a pessoa se equivoca com isso que é para você ficar sentando em zazen e atingir um tipo de transe iluminado. Então no começo você tem a dormência, formigamento, dor na junta, dor muscular, incômodo mental, e você pensa para que que estou sentado aqui. Essa coisa toda.
E qual a importância pra gente sentar junto com outras pessoas?
- Primeiro a disciplina. Particularmente eu tive que organizar um local de prática porque sozinho eu não conseguia praticar.
Eu posso praticar sozinho?
- Pode. Mas na verdade sozinho não existe. Nem sozinho nem junto. Mas é claro se você esta praticando sozinho você esta praticando por todos os seres. Mas o que eu digo é o seguinte: a disciplina em geral vem com a sangha, e quando você senta com a sangha você descobre que existe uma outra coisa que está além do individual.
O que é sangha mesmo?
- Sangha é o grupo de praticantes. Num sentido mais amplo sangha são todos os seres sencientes, a manifestação do Buda na forma de seres sencientes. Mas o que eu digo é o seguinte: se você senta junto com outras pessoas, de repente você descobre que existe um mais além do individual; isso, qualquer pessoa que faz qualquer coisa em grupo sabe, quer dizer, existe uma coisa que transcende o indivíduo, que é mais além do indivíduo, e que não é meramente a soma dos indivíduos; é alguma coisa que acontece ali e que tem que ter um grupo para acontecer.
E quem se concentra melhor com os olhos fechados, pode fazer zazen de olhos fechados, qual o problema? Porque que tem que manter eles semiabertos?
- Normalmente, quando você fecha os olhos existe primeiro uma tendência a você devanear mais rápido e ficar muito perdido no seu inconsciente, a ideia do zazen não é você entrar num transe, ao contrário, é você ficar presente aqui agora, nesse corpo, nessa respiração, nesse lugar, então não tem muito sentido você ficar numa viagem imaginária. Não é que seja impossível você se concentrar na respiração, na corporeidade, de olho fechado. Mas a maior parte das pessoas tem tendência a começar a sonhar, e quando fecha os olhos e fica quieto por muito tempo, dorme, cochila. Então a idéia do zazen é você poder ficar de olhos abertos, entreabertos presentes no aqui e agora. Não é dormir, não é cochilar, não é devanear. Existe uma palavra em japonês que sempre confundo com nome de restaurante. Chama-se makyo. Makyo são as ilusões, alucinações que acontecem às vezes durante o zazen, e elas acontecem muito facilmente quando você está de olhos fechados. Então o jeito de facilitar a prática no fundo é não ficar de olhos fechados o tempo todo, você pode ficar com olhos entreabertos.
E o que fazer quando bate o sono?
- Dorme! Quando bate o sono, acontece o seguinte, você respira.
No meio aí começa a dar aquela soneira e...
- Às vezes pode ser que tenha dormido mal.
E quando bate o sono?
- Tem um momento do sono que pode ser só uma resistência ao zazen em termos assim do seu ego mesmo, isso aqui está chato, está tedioso, aí você quer dormir você vai para o sonho, vai para a alucinação. Nessa hora é bom você se concentrar de novo na respiração, volta para seu hara, faz aquela técnica de...
Que é hara mesmo?
- Fica um ponto mais ou menos quatro dedos abaixo do umbigo, quando você está com as mãos colocadas naquela postura em que a mão direita esta sustentando a esquerda, os polegares unidos no colo. Fica mais ou menos no plano dos polegares, dentro do seu corpo, lá no abdômen, mais ou menos em frente à coluna vertebral. Então a ideia é você soltar o ar completamente quando chega no hara, você soltar mais um pouco, em geral isso ajuda a afastar o sono. Deixar o queixo com uma tendência de ir para dentro, não é você pegar a cabeça e abaixar a cabeça, mas é como se você fosse puxar o queixo para dentro um pouco. Isso alonga a coluna e também te ajuda a manter o corpo mais desperto. Agora de todo se você tiver isso uma vez ou outra, é isso; agora se você tiver isso sempre é sinal de que você esta dormindo mal e precisa dormir.
E quando a cabeça dispara? Quando começa a vir um pensamento atrás do outro, o que você faz?
- Talvez você devesse perguntar quando a cabeça não dispara, porque como diz um professor, interessante não é o dia da iluminação, é o day after, o dia depois da iluminação. Então o que eu penso é assim: quando a cabeça dispara é o teu estado natural. Então você fica tranquilo que é isso que você faz o tempo todo. Então você apenas volta para a postura e para a respiração sem avaliar, sem tentar parar aquilo. Aquilo é você, você no seu estado natural. É sinal que você esta conseguindo ficar à vontade com você. Então, fica à vontade ali, com a sua postura.
Tem um debate do Sawaki com o Tokuda, um diálogo, onde Sawaki diz que a respiração não é importante, o que é importante só ficar só com a coluna reta. Porque se concentrar tanto na expiração?
- Para minha prática, que eu fui desenvolvendo comigo, é mais fácil me concentrar na expiração, porque para mim naturalmente a expiração solta, relaxa, e inspiração para mim tem a ver com acumulação, uma coisa assim de você ficar cheio, e reter as coisas, expiração esvazia, então de alguma maneira isso para mim particularmente ajuda a soltar os ombros, ajuda a cair para o centro do hara. Agora, talvez o que Sawaki Roshi estivesse dizendo é que você não tem que ficar preocupado com a respiração. Vou gastar dois minutos com uma coisa. Tem um mestre ocidental Winnicott, que ele fala um pouco sobre essa coisa do objeto transicional. Objeto transicional em psicanálise é alguma coisa que você usa para poder se separar da mãe. Que a mãe é o teu primeiro contato com o mundo externo para criança, para o bebê, isso dentro dessa prática, dessa tradição da psicanálise. O objeto transicional permite que a mãe se afaste e o bebê tem alguma coisa para ficar ali, uma chupeta, um brinquedo, uma coisa assim. Um dia ele constrói um grande objeto transicional que é o ego, e faz com que ele possa estar no mundo, sozinho entre aspas, mas com todos os objetos fantasiosos dele, toda imaginação. O que o Buda te diz é legal, o ego serve para isso e é maravilhoso. Mas o Buda te diz assim: sai de casa, vai para a floresta um dia, eu larguei a minha mulher e meu filho. Ele largou o mundo dos objetos transicionais e vai para a floresta onde ele reencontra o primeiro objeto transicional, que é o ego dele. E chega um momento que ele abandona esse objeto transicional e vai encontrar de novo o que: a respiração, o corpo e depois ele vai para outro lugar. Mas de qualquer maneira a respiração é só um objeto transicional para gente prestar atenção. E se você ficar preso na respiração tudo bem, você até vai ter benefícios fisiológicos na meditação, a sua pressão vai baixar, seu coração vai bater mais tranqüilo, mas você não vai conseguir passar adiante. Então o Sawaki Roshi fala assim, está bom, larga a respiração, fica só sentado agora. E talvez se você pudesse falar com ele, ele fosse dizer assim, larga a coluna agora, fica só sentado.
Tem momentos que você para de pensar no zazen? Os pensamentos param?
- É difícil porque você significa que o ego, quer dizer, o ego nunca para de pensar, a função do ego é pensar, se o ego para de pensar é porque o ego morreu. Então na verdade você nunca para de pensar, mas às vezes esse você que pensa passa simplesmente a ser uma coisa que tá acontecendo ali.
O que é pensar no não pensar?
- É você deixar o não pensar se manifestar.
Uma pergunta que eu faço sempre é se há progresso no zen...
- Mumon fala assim, se você quiser progredir, você está enganado, se você voltar atrás você está estagnado. Então, o que que você faz exatamente, como é que você pratica? Então Mumon vai respondendo um pouco para você, o que que é progresso no zen, para onde que você vai? Ao mesmo tempo o que é estagnação no zen? Se não tem estagnação não tem progresso, mas se não tem progresso também tem estagnação? Eu não sei.
Como que a gente sabe que se iluminou?
- Você não sabe. Você não sabe que se iluminou.
A gente se ilumina uma só vez ou se ilumina várias vezes? O que é kenshô e satori?
- No Rinzai se fala um pouco de pequenas iluminações que são obtidas, por exemplo, quando você esta vivendo com um koan e de repente você consegue quebrar aquela barreira do koan, eles chamam isso de kenshô. Você teve uma pequena iluminação que se permitiu estar presente naquele momento com o koan. Mas satori teria a ver com uma coisa mais global que um koan num certo sentido. É uma coisa meio complexa, porque o que que é você ter uma pequena iluminação, como é que a iluminação pode ser pequena ou grande? Eu acho que isso é um problema de tradução. Quer dizer o seguinte: um momento em que você se manifesta iluminadamente você pode chamar de kenshô. Se esse momento que você está falando de uma perspectiva mais ampla, do Buda, por exemplo, que estava o tempo inteiro desperto, você esta falando de um sujeito que está no satori, mas que na verdade ele é o satori, ele é o Nirmanakaya, o corpo do Dharma manifesto. Agora kenshô aponta para um momento em que você permite que isso aconteça. Você, o ego, no sentido assim, na hora em que o ego sai da cena, acontece esse kenshô. Então no momento que você está falando de uma coisa temporal.
É como um insight?
- É como um insight. Eu acho que é a mesma coisa que um insight, mas tem um pequeno detalhe. O insight eu entendo como um kenshô na medida em que ele ultrapassa o ego. Se você for olhar o insight dentro da teoria psicanalítica clássica, na verdade, é quando você consegue elaborar alguma coisa, ultrapassa uma defesa, e de repente você tem uma realização de alguma coisa que está no inconsciente. Eu não acho que insight seja isso. Para mim eu vejo insight na perspectiva budista, eu acho que insight é quando você ultrapassa o ego. É quando você consegue estar presente nessa realidade mais ampla que o ego. E aí a angústia de certa maneira deixa de ser um incômodo. Não é que ela desapareça, mas ela deixa de ser um incômodo. Ela passa a ser o que é.
E uma questão aí mais doutrinária, há diferença entre a prática e a iluminação?
- Na nossa tradição não.
Se você está sempre iluminado, para que praticar?
- Quando você esta praticando, você já está sempre iluminado.
E se você já tem a natureza Buda, para que praticar?
- Boa pergunta, né?! Você viu que esta foi a questão do Dogen. Na verdade, enquanto você não está praticando, você não está deixando essa natureza búdica se manifestar. É só isso. Na verdade acontece o seguinte: a gente aprende a brincar e construir um mundo de relações, um mundo que tem a ver com esse ego que a gente usa normalmente; então é claro que o ego também é uma manifestação de Buda, é claro que o ego também é uma manifestação dessa natureza. Mas quando a gente permite que ele se manifeste de uma outra forma que não o ego, você está permitindo que a iluminação se manifeste. É por isso que a gente pratica na verdade, para deixar que isso se manifeste. Para deixar que isso se manifeste. Tem uma grande renúncia aí, se você observar bem, porque você abre mão de saber o que é isso. Quando o Buda vai para a floresta ele ainda tem a ilusão de obter a iluminação. Ele quer se libertar, ele só se liberta quando ele desiste, no sentido de que... não é isso, não pode ser isso! Não é uma questão do ego, é uma questão de renunciar até obter a iluminação, e saber que o ego nunca vai saber o que é iluminação. O ego é que nem Moisés. Eu acho que na tradição cristã, se você entender Moisés, Moises é o ego. Moisés vai ver a sarça ardente, aí ele pergunta logo como o ego: quem é você? Aí Deus fala para ele o que: “eu sou o que sou, se vira”. E ai diz para ele, “Meu filho, você não vai entrar na terra prometida, você vai só olhar para a terra prometida”. Então o ego é isso. O ego é que nem Moisés, ele chega na beira da terra prometida e fala, “Fui”. Porque aí não tem mais para onde ir. Ele vai até ali, e a terra prometida é uma coisa que não é para ele. Então acho que quando Buda percebe isso, ele acalma, ele se aquieta, em zazen, e aí ele vai ter a abertura do grande tesouro do Dharma, Shobogenzo, o verdadeiro olho do tesouro do Dharma.
Mas se você está dizendo isso, como é que você pode conciliar o zen com a vida cotidiana, vida agitada, numa cidade, como é que você faz essas duas coisas?
- Você sabe que Dogen fala muito sobre isso, porque tem duas tradições no Zen. Tem uma que fala que para você fazer isso, você tem que se retirar da vida mundana, e tem uma que fala que, ao contrário, você tem que ficar na vida mundana. Na verdade o que ele está falando é que tem uma renúncia, que você renuncia a esse funcionamento egóico, você pode estar em qualquer lugar. Porque renunciar a isso significa poder brincar, então eu continuo brincando, eu não desisti do meu ego, e ele brinca bem. Na verdade é que quando você desiste de ser só o seu ego, ele pode brincar legal, ele pode brincar a vontade, brincar “nos campos do senhor”. Assim no sentido de que você esta praticando, e aquela prática vai acabar informando seu ego, de alguma maneira, é um pouco assim. Se você tem uma prática, aquela prática funciona como núcleo da sua existência. E aí o que está em volta vai se contaminando com a prática. O que a gente faz normalmente é ao contrário. A gente tem um ego muito forte e a partir desse ego a gente tenta contaminar a prática. E aí a gente vai criando uma prática imaginária que não tem nada a ver com prática, que é a prática do ego, a crença no ego, a dependência do ego, eu sei, eu faço, eu aconteço, eu construo coisas maravilhosas. Se você mudar esse sentido, você pratica, e aí todas essas coisas maravilhosas que você construiu, sociedades, crenças, não sei o que, elas vão começar a ficar minando prática. E de repente a prática vai tomando conta.
Não é uma fuga do mundo? Portanto, não é fugir do mundo?
- Muito pelo contrário, é você impregnar o mundo com isso, na verdade, é você deixar o mundo cada vez mais cheio disso.
E você pode ter outra religião e praticar o Zen? Ser católico, ser umbandista, crente, protestante? Pode ser católico e praticar?
- Eu não acho que o zen é religião, então fica difícil outra religião. Porque eu acho que essa coisa da religião tem a ver com o ego, o ego tem crenças e essas crenças são importantes, são os objetos transicionais do ego também, ou seja, ego se agarra naquilo. Você quer se agarrar com Jesus Cristo, com a Virgem Maria, o Buda da medicina, o Buda Xáquiamuni, não tem problema, você pode usar o budismo como uma religião. Eu não acho que a religião seja ruim. Você não pode confundir a religião com prática nesse sentido. Religião é uma outra questão, é uma instituição, é uma coisa do coletivo, tem a ver com a sociedade da gente, as formas que a gente se relaciona no mundo. E se você usa bem esse objeto transicional para sua fé, tudo bem, isso pode muito útil.
Você tocou num tema que eu ia perguntar mais adiante, mais vou aproveitar que você tocou nele, que é a coisa devocional, dos Budas, dos Bodhisatvas, de acender velas, de fazer objetos votivos, isso não é a mesma coisa de Nossa Senhora, de São Francisco de Assis, Xangô, Oxossi, Ogum?
- Exatamente a mesma coisa, não tem problema nenhum, o problema é o ponto de vista.
Mas na prática você tem que ver o Buda da Medicina, você visualiza...?
- Fé é uma coisa que você sente. Eu acho que quem tem fé na verdade é alguém que entende o não saber. Fé tem a ver com esse não saber, não tem a ver com saber. Eu não conheço muito dos jesuítas, mas, por exemplo, às vezes eu fico um pouco na dúvida na questão de você atingir a fé pelo conhecimento.
Esses são os beneditinos.
- Os beneditinos. E os jesuítas fazem o que?
Os jesuítas pelos exercícios espirituais.
- Eu acho que a fé na verdade é alguma coisa que você sente, então preste atenção, eu acho que a fé tem a ver com esse não saber. Você incluir através de uma sensação que tem alguma coisa que você não sabe, que esta além da sua possibilidade racional mais que de alguma maneira informa o jeito das coisas existirem. Essa transcendência. Então eu acho que essa fé, ela normalmente para gente é mais fácil ela tomar uma forma, do que a gente ficar vivendo nessa coisa tão indefinível, do eu sou o que sou, do Iavé do Moisés. Então às vezes da uma forma de Nossa Senhora, às vezes da uma forma do Yakushi Niorai, e eu acho legal quando você pode deixar nessa forma, porque, para mim né, quando eu falo do Yakushi Niorai, eu estou falando de uma capacidade de cura que transcende a minha racionalidade, que transcende o que eu conheço. Então eu posso fazer uma reverência para Yakushi Niorai e até rezar para uma pessoa que esta doente, nesse sentido, eu estou fazendo uso de alguma força que não sei bem o que que é, mas eu sei que existe, que eu vejo ela funcionar como médico, eu vejo que pessoas que tem fé melhoram frequentemente, às vezes até se curam de doenças que outras pessoas que não têm a fé não se curam. Veja bem, não estou dizendo que a explicação é que eu acho que o Buda na Medicina vai chegar lá, vai tocar a testa da pessoa e vai curá-la. Mas alguma coisa acontece, que eu não sei de que ordem que é, e que tem a ver com essa fé. E para mim, tanto se me dá se a pessoa tem fé na Virgem de Guadalupe, ou no Buda da Medicina, contanto que essa fé seja autêntica, venha do coração. Acho que a fé funciona nesse sentido, a devoção, eu respeito muito as pessoas que são verdadeiramente devocionais. O problema da religião para mim é, quando ela se torna uma coisa formal, o sujeito não tem fé naquilo, ele repete aquilo por uma questão de: ah, bom, eu tenho que fazer isso porque eu sou padre, ou tenho que recitar porque sou monge, ou tenho que jogar búzios porque sou pai de santo. Aí se o cara não tem essa sensação do transcendente eu acho que ele tem mais é que procurar outra profissão.
E o monge, o que é ser monge?
- Para mim especificamente ser monge é fazer um voto de praticar. Como eu estava te dizendo, para mim ser monge tem a ver com você organizar um lugar de prática para você se comprometer com a prática, para mim, no sentido, para eu me comprometer com a prática eu não podia só ficar fazendo para mim. É curioso isso porque o Mahayana fala muito disso, o caminho do Boddhisatva é sempre em função dos outros, que é que é o voto do Boddhisatva? Enquanto houver seres para serem salvos eu não vou me dissolver nesse Nirvana, eu vou estar presente no aqui e agora, no mundo, no Samsara. Então, é uma transformação do ideal do Arhat do Theravada. O Theravada é aquele cara que vai praticar, vai ter a disciplina sozinho, e ele vai alcançar a libertação, mais para ele especificamente, uma coisa não exclui a outra. Mas o Mahayana a idéia é de que você vai prática para os outros sempre. Então, eu simpatizei com o fato de ser monge um pouco em função disso, ou seja, eu não saberia praticar só para mim. Não por uma questão de eu ser uma pessoa maravilhosa e benevolente, mas porque eu sou preguiçoso, então na verdade eu vejo a prática do monge como a prática do preguiçoso, o cara que não consegue praticar sozinho, então ele tem que organizar uma sangha, organizar um centro de prática, ele tem que trabalhar para os outros, que ai é uma maneira de ele dirigir a energia dele, para mim ser monge é isso basicamente.
O Buda pregava para grandes plateias e a tradição zen brasileira é pregar para pequenas plateias, o que é que mudou? Porque não vai para televisão, porque não faz essas coisas modernas...?
- A história do Buda, primeiro que ele começou com plateias, então você tem que ver os momentos históricos. O Buda pregou durante quarenta e cinco anos, mais ou menos, conforme as tradições. No começo ele pregava para três pessoas, quatro pessoas, cinco pessoas, em algum momento foi aumentando, foi aumentando, mas só no final que ele pregava para multidões de seres, quer dizer, na verdade segundo os sutras ele pregava para infinidades de seres. Vamos ficar no mais concreto. Eu acho que o momento histórico daqui é esse, desses pequenos grupos porque eu acho que o que vai...
Porque os protestantes têm ao contrário, a visão dos protestantes, dos católicos...
- O que é que atraía as pessoas depois que o Buda começou a pregar, o que é que atraía as pessoas? Você acha que pelas palavras do Buda ou era a experiência de estar junto daquelas pessoas que praticavam e que você podia intuir uma outra forma de existência. Então o que atraía as pessoas não eram as palavras de Buda mais era o fato de que havia uma coisa ali que funcionava, que era até colocado em palavras, mas não era a prédica dele que impressionava, era a prática dele que impressionava, porque o Buda continuou praticando até morrer, ele fazia zazen todo dia.
Você já foi a um rito da igreja universal, dessas igrejas evangélicas, quando o pastor conduz...?
- Acho que tem uma coisa ali catártica basicamente, e que funciona nesse nível básico de você canalizar a angústia das pessoas e dar uma solução, sem menosprezo porque esse já é um trabalho maravilhoso, às vezes isso ajuda as pessoas a encontrar um caminho na vida, até usaria uma expressão, meios habilidosos para isso, eu não tenho questão contra isso. Mas acho na prática da gente o que vai atrair mais pessoas vai ser a prática dos praticantes, eu acho que na medida em que a gente seja um praticante, você vai acabar atraindo mais atenção, na verdade, que nem o Buda atraiu, o grupo dele atraiu atenção porque eles eram diferentes, eles provocavam uma atmosfera diferente, não é porque eles tivessem um marketing legal, ao contrário, na época deles tinha um marketing muito mais legal que o dele. Tinha gente que, tem umas historinhas dessas, de caras que disputavam com ele, que começavam a ficar mobilizados. Mas, ele nunca se preocupou em fazer marketing do negócio. O marketing dele, era a prática dele. Então ele vivia com ele, e qual era o mote dele? Vem e pratica comigo.
O que quer dizer sesshin?
- Sesshin, em geral eu entendo como atividade concentrada, assim da mente, um tipo de mente búdica, é um tipo de período em que você intensifica a sua prática. E você se dedica a ela com mais afinco.
E é importante fazer?
- Eu acho super importante.
Quantos sesshins você deve fazer por ano?
- Isso depende muito. Eu ia te perguntar quantos zazens você deve fazer por ano. Porque eu acho importante sesshin para quem pratica. Eu tenho uma questão com sesshin, eu não gosto de praticante de sesshin, no sentido assim, do sujeito que pratica só sesshin. Então, eu às vezes aqui na sanga o que acontece é que eu limito o número de sesshins, porque eu acho que o sesshin tem a ver com o fato da pessoa intensificar a prática. Então a prática é para quem já tem prática. Eu não acho que não possa ter um sesshin para quem nunca fez ou experimentar, pode ser, mas eu acho que é melhor primeiro praticar bastante e aí intensificar a prática, então eu acho que você tem uma sanga que esta praticando sempre, ela pode ter um sesshin por mês, um sesshin de fim de semana, mais isso é uma sangha que esta praticando sempre. Mas isso é sangha que pratica de bissextamente talvez você possa ter um sesshin por semestre, que é para dar uma intensificada. Mas não pode ser uma coisa muito assim comum também, porque eu acho que se você coloca o sesshin, se você coloca o sesshin como uma coisa muito diferente do seu dia a dia você passa a ter aquela prática da montanha, vou para o eremitério, aí eu vou passar dez dias em silencio e ai vou ver o que é que é a pratica real, e quando você volta para o mundo, o mundo é uma porcaria mesmo.
O que é um koan?
- O koan é um jarro d’água. Um koan serve para você...
Muita gente acha que é uma charada.
- É essa é uma compreensão meio comum do zen, como se fosse uma piada, o zen, uma coisa...
Pela qual você se ilumina, se você decifrar aquela charada, você se ilumina...
- No Rinzai durante uma época tinha apostilas de koans, isso no século dezenove, no Japão, já decorava koans, porque eles têm uma sequência de mais de mil koans para você ser aprovado como monge total. Então o que acontece é o seguinte, um koan para mim é um jarro, é uma coisa que dá uma forma momentânea para a prática. A tua prática é como uma água ela tem que penetrar em todos os lugares, que nem a água mesmo, quer dizer, quando ela chove, ela vai, vai escorrendo e vai para tudo que é lugar, ela infiltra que nem nessa sala, por exemplo, ela faz mil coisas. O jarro, ele dá uma forma momentânea daquela prática, e ai você pode é, através dessa forma ultrapassar a própria forma. A gente não pode reduzir o koan a uma charada, porque o koan ele é uma charada para o ego, no sentido assim, ele é uma coisa que serve para quebrar até esse raciocínio linear, lógica.
Mas ele não distrai?
- Se você usar o koan como uma distração, ele deve ser uma coisa para te distrair. Ou vai virar um objeto que você vai acumulado, tipo assim, “Ah, eu já decifrei trezentos koans”. Aí vira uma acumulação. Mas o koan é uma chance. Como Lacan dizia, o Lacan ele dizia uma coisa interessante. Que uma frase pode resumir a questão de uma pessoa e dizia que o teu inconsciente é organizado como essa frase. E cada pessoa tinha que descobrir essa frase. Eu acho que ele não dizia isso a toa porque ele gostava de Zen e gostava dos koans, e quando ele foi ao Japão, ele gostou muito dessas coisas. Quando foi ao primeiro seminário, ele estava falando do monge do mestre Zen, no começo do primeiro seminário ele esteve no Japão, e ele se impressionou muito com a questão da transmissão e ele pegou umas coisas do Zen, mais da maneira dele, a questão do corte, a questão da palavra cheia, palavra vazia, o que é transmissão, a transmissão ficou muito importante para o lado dele. A questão do koan então, é que qualquer koan tem toda a essência da prática. Qualquer koan de qualquer lista. Se você for olhar lá você vai ver a essência da prática, mas para isso você precisa ultrapassar um pouco essa noção de charada, enigma. Você tem que tem que entender você como koan, como é que a sua vida se manifesta nesse koan.
Porque que dizem que o koan do “se o cão tem natureza Buda?”, o Mu é o koan essencial, porque que dizem isto, que está tudo contido nesse koan?
- Eu acho que é o único koan que eu conheço que tem duas versões. Tem um momento em que Joshu responde sim, e tem uma resposta não. Então é um koan muito especial por isso. É como se fossem dois finais, é tipo aquela novela que tem dois fins. Em segundo lugar, como tem duas respostas você pode entender que a resposta em si não é a questão do koan, talvez a questão seja a pergunta. O que é ter a natureza de Buda, que é que você entende por alguma coisa ter a natureza de Buda.
Uma coisa que Pai-Chang sentado no Itororó, porque aquilo também tem várias respostas...
- A primeira vez que sentei com meu mestre lá em Nova York, ele me deu esse koan. Mas ele fez uma coisa interessante, ele disse assim: não interessa o koan, interessa o Mu, então você vai sentar com o Mu, fica só com esse Mu do Chao-Cho, e aí ele me fez ficar repetindo Mu durante um zazen inteiro, cada expiração era um Mu. “Muuuuuuuuuuuuuuuu...” O zazen fazendo Mu.
Isso não é parecido com um mantra? O mantra não pode ser o budismo zen? O zen usa mantra?
- O Zen não, o Zen é pobre, então o Zen rouba as coisas das outras práticas. Ele na verdade, mantras são usados em geral como a essência de um sutra.
Como é mesmo o mantra?
- Tem o sutra que é uma escritura budista, normalmente é uma fala do Buda, uma explicação. Tem o dharani, é como se fosse um trecho desse sutra, é como se fosse um trecho que concentra. E aí você tem o mantra, que é como se fosse uma frase, uma linha, uma palavra que concentra a essência daquele ser inteiro.
Que nem o Mu?
- Que nem o Mu. Então o Mu é o mantra. Mas também o mantra pode ser “gate, gate, para gate parasam gate, bodhi swaha”, ou então o mantra do Buda da Medicina On koro koro sendari matogi sowaka”, que o nosso professor tem tanto apreço. Mas esse mantra ele serve como um foco para sua concentração também.
Mas eu posso fazer no zazen, o praticante pode usar como recurso, de repente?
- Pode usar como jangada
Durante um período?
- Durante um período... eu uso às vezes. O que eu uso mais é o do Buda da Medicina, “om koro koro....”. Foi o que o Tokuda me disse que o mantra do Buda da Medicina serve para tudo, ai então tá, eu vou usar. Tem uma coisa do zen, o zen não tem nada disso. O zen é pobre nesse ponto. O zen usa as coisas do Shingon, que é o Vrajayana japonês, quase todo monge zen é treinado no Shingon e sabe fazer usar mantras, dharanis, encantamentos, exorcismos, essas coisas todas que não tem no zen.
E porque que vocês continuam no zen a recitar tudo em japonês, não passam para o português? Os protestantes abandonaram o latim e começaram a pregar na sua própria língua. Até os cantos de umbanda tem o nagô, mas a maior parte já são em português, na nossa língua. A igreja católica abandonou latim, só usa o latim nos rituais mais complexos. Porque que vocês cantam e recitam em japonês?
- Novamente tem várias explicações. A primeira explicação que eu posso te dar é que eu perguntei isso ao mestre Tokuda uma vez, ele falou assim, recita em japonês, e aí eu fiquei recitando em japonês, essa é uma primeira explicação, obediência ao meu professor. Mas a segunda explicação tem a ver com o seguinte, é claro que você pode recitar em português e você sabe que eu recito em português às vezes, mas o importante da recitação não é necessariamente a compreensão do que está sendo recitado, é mais o exercício de estar presente na recitação. Então às vezes eu, pessoalmente, que não é nem uma prática do zen aqui no Brasil, mas é uma prática minha, eu gosto de recitar dos dois jeitos, porque quando estou afim de que a pessoa preste atenção na recitação mesmo, no ato de recitar, eu prefiro recitar em pali, ou em sino-japonês, porque aí a pessoa desiste de entender, e aí ela fica só na respiração e na emissão do som, que nem eu no Mu lá “muuuuuuu...”. Eu podia recitar “não”, mas “não” tem uma conotação, tem mil significados para mim em português. Então às vezes quando você recita em português, você começa a viajar na maionese, porque você começa a pensar no significado dos sutras, então eu gosto de revezar por causa disso, mas é claro que você pode recitar porque afinal de contas o som tanto faz. Eu não tenho aquela coisa dos tibetanos que dizem que o som da vogal primordial naquela língua é fundamental. Eu não acredito nisso.
O que é que é kyosaku, para que é que serve?
- Tem duas formas de falar, tem keisaku e kyosaku.
O que é?
- Eu nunca sei qual é qual, mas acho que no Soto é kyosaku e no Rinzai é keisaku. Uma forma traduzida por bastão da iluminação e o outro é traduzido por bastão da disciplina. Eu não sei, eu acho que no Rinzai é traduzido por bastão da disciplina. Mas de qualquer maneira é um objeto que serve primeiro pra disciplina no sentido de...
Mas dói, você bate com força?
- Depende da pessoa. A ideia não é que você castigue o outro na verdade, mas é que o impacto seja suficiente para trazer você pro seu corpo. Então a disciplina tem esse sentido, quer dizer, o kyosaku ele é usado no mosteiro às vezes só para disciplina mesmo. Se o sujeito está dormindo numa posição inconveniente, se ele esta sentado numa posição inconveniente, então aquilo trás você para seu corpo. Então a primeira vez que eu tomei o kyosaku foi quando eu cheguei no Japão, eu estava lá já um mês mas não tinha chegado ainda, aí eu tomei aquele kyosaku, pela primeira na vida, e aí cheguei no meu corpo, foi fantástico, de repente eu aterrizei no Japão, eu estava viajando em algum lugar estranho, entre o Brasil e o Japão ainda. Então serve para isso, agora, normalmente ele é feito para bater em certos lugares que vão ajudar a circulação de energia no teu corpo, isso é a explicação da medicina chinesa. Mas basicamente é uma disciplina para te levar pro teu corpo, para o aqui e agora, naquele momento, por isso que pode ser uma chance de iluminação, um bastão da iluminação.
E o kesa, o que é kesa?
- O kesa é o manto que a gente usa em todas as tradições budistas, tanto faz a linha, todos os monges têm mantos, e o manto foi a vestimenta do monge budista, ou seja, do Bikhsu, que o Buda disse, o Buda dizia que a roupa do monge era o kesa. E é interessante porque um outro nome para o kesa é mancha, contaminação, porque na verdade a ideia tem a ver com samsara e nirvana. É você viver o samsara sabendo que é o nirvana, e vice e versa. Porque aquela roupa era feito com trapos, retalhos de mortalhas, e tinha a ver com doenças, morte, contaminação, então aquilo era fervido e depois tingido para ficar de uma cor só, e costurado na forma de campos de arroz. O Buda um dia passeava com Ananda e viu campos de arroz e falou para o Ananda, que lindo, Ananda, que bonito. E o Ananda falou, “A gente pode achar as coisas bonitas?”, e Ananda, coitado, ele vivia viajando na maionese da iluminação, então ele ficava muito espantado, porque o Buda curtia as coisas estéticas, a beleza do arrozal, então o Buda falou para ele, Ananda, vamos costurar o manta na forma do arrozal, para gente lembrar da beleza que é natureza, enfim, é o mundo que você costura e faz aquelas faixas dos campos de arroz, então tem todo um ensinamento sobre como você costurar um kesa. Mas a ideia, a palavra kesa, quer dizer originalmente mancha, contaminação, às vezes você vai ver escrito keisa, mas kesa é para contaminação, mas é a mesma raiz na verdade, então tem a ver com essa coisa de você pegar e transmutar aquilo que é contaminado naquilo que é mais puro. Quer dizer, é o ensinamento do Buda que você veste.
É por isso que vocês o usam?
- Exatamente. E na verdade é a roupa do monge, do cara que faz o voto, é aquela roupa toda que agente usa por debaixo do kesa na tradição zen, essa é uma roupa tradicional chinesa adaptada para o Japão, e que a gente usa por respeito aos nossos professores.
E qual a diferença do Soto para o Rinzai, e para o Chan chinês?
- O Chan foi a forma original do Zen, a partir de Bodhidharma na China, quer dizer, Bodhidharma era um monge que provavelmente pela localização dele... era um monge que tinha sido treinado, no que seria hoje o Theravada e mais, mas na época não era tão separado o Theravada do Mahayana. E aí quando ele chegou na China ele começou a praticar, só que os chineses já tinham toda uma formação taoista, aquela coisa toda. Então acabou que houve uma certa interpenetração do taoismo com o budismo, e aí essa disciplina Chan da meditação ficou conhecida como Chan, ou seja, os monges que praticavam a meditação.
Sim, mas ele continuam a ter uma linhagem de Chan chineses que vem até hoje.
- Não vem até hoje, ela sumiu. E aí o que aconteceu na época da revolução. Ela sumiu antes da revolução, na verdade, ela sumiu no final do século dezessete, dezoito, naquela conturbação política da China, o budismo foi se transformando basicamente em práticas místicas, esotéricas. Mas aí o Chan de certa maneira sumiu. E ai ficou o Zen no Japão, Rinzai, Soto e Obaku que é uma terceira linhagem que a gente fala pouco na verdade, Huang-po em chinês. Foi a linha que deu origem ao Rinzai. Mas ela era separada do Rinzai. Mas no Japão até hoje tem, têm poucos mais tem. Então na verdade as linhagens que sobraram tem a ver com aquelas cinco casas originais do zen que foram virando e sobrou só o Soto, o Rinzai e o Obaku.
Qual a diferença na prática?
- Na prática na verdade não tem tanta diferença não, embora nominalmente no Soto você privilegie só o sentar em zazen. No Rinzai você privilegiaria o estudo do koan e a prática do zazen com o koan. E o Obaku faz uma coisa que é mais o koan junto com o só sentar. Mas na verdade o que aconteceu foi que em hoje em dia isso tudo é muito misturado, a maior parte dos professores é treinado em todos, tipo Tokuda, agora o Chan renasceu na China, e depois de um certo tempo ele teve um renascimento influenciado por professores até ocidentais também e professores chineses antigos. Só que em hoje em dia se você for ver o Chan chinês, ele não é mais o Zen, ele é uma coisa que é misto de Zen com Terra Pura, então eles misturam as práticas de meditação do Zen com as práticas devocionais do Terra Pura.
Já que você falou no Terra Pura, existe reencarnação? O que é reencarnação? O budismo na tradição original tem a ideia de vidas que você vai...
- Na verdade, a reencarnação foi um conceito inventado pela teosofia e pelo espiritismo ocidental, nunca foi usada essa palavra, essa palavra não existe. Na verdade a gente fala de renascimento, e renascimento pressupõe aquilo que o Buda dizia, é como acender uma vela na outra, e quando uma vela está se apagando você acende uma outra vela. Mas o que é que passa ali, não é o fogo da vela anterior na verdade, você tem uma coisa que coloca uma ignição, que é que provoca a ignição dessa nova vela. É o fogo dessa vela anterior. Então ele diz o seguinte, enquanto existe desejo, enquanto existe carma, você vai provocar uma nova vida. Se eu fosse usar uma linguagem psicanalítica diria o seguinte: enquanto existir libido, você vai provocar um novo corpo, uma nova manifestação, mas não é uma reencarnação daquele corpo antigo, é como se fosse uma nova chance, para aquela força vital se manifestar, mas a força vital não é de ninguém, ela é uma coisa que é mais além do individual e do coletivo, ela acontece.
Mas há tradições que acham que você vai para uma outra vida, volta,...
- Dentro do budismo tibetano, que fala desses renascimentos mais dirigidos. Eles falam às vezes de mestres que renascem em quatro ou cinco pessoas diferentes. Então eu mandei perguntar para o Dalai Lama se ele achava que um computador podia ser o próximo Dalai Lama, ele falou, porque não? Não tem a ver com uma questão de reencarnação, tem a ver como uma questão de função. A função da consciência na forma humana do precioso nascimento humano, é se manifestar enquanto consciência reflexiva. Mas aquilo não é seu, aquilo é um funcionamento. Esse funcionamento pode acontecer a qualquer momento. Então de repente quando você morre apenas quer dizer que esse suporte físico dessa manifestação acabou. Outra lâmpada vai ser colocada em outro bocal, e a energia elétrica vai ser usada de novo, mas a energia elétrica que sai dessa lâmpada é igual a energia da outra.
São ou não são importantes as reverências e prostrações?
Isso é importantíssimo. Porque na verdade a gente vive num mundo em que a gente o tempo inteiro está sendo lembrado da importância do nosso ego. Então a reverencia e a prostração é um jeito habilidoso de você se lembrar neste mundo de que você não é a coisa mais importante deste mundo. É sempre importante você prestar reverência para alguém, para alguma coisa, bater a cabeça no chão. Adoro essa expressão do candomblé, bater cabeça. Eu acho maravilhoso. Porque é a questão de você perceber que você está abaixo daquilo, você tem que reverenciar alguma coisa que é mais importante que você naquele plano. A importância, eu diria, é até do ponto de vista corporal, de você poder mudar de ponto de vista, de você de repente em vez de ficar olhando de cima, olhar de baixo. Agora é um meio habilidoso, eu posso até te dizer a mesma coisa. O que é que é importante no sutra? É o significado ou é a prática do sutra?
O que é que é abandonar o ego, desaparecer o ego? Deixar cair corpo e mente, o que é isso?
- Essa libertação do ego significa você..., é um pouco aquilo que a gente diria no espiritismo: sai desse corpo que ele não te pertence. Na verdade a gente acredita tão firmemente que a gente é o ego, que a gente fica grudado nesse ego, então a gente fala assim: eu sinto, eu acho, eu penso, eu preciso, eu quero. Na verdade abandonar o ego é sair desse eu quero, eu penso, eu faço, eu aconteço, tudo bem, isso existe, ali, como aparição, como manifestação. Mas isso não é o mais importante naquele momento. Naquele momento, você permite que uma outra coisa aconteça. Então é aquela renúncia, a gente volta para aquele ponto da renúncia. O que é que é a grande renúncia do Buda, não é sair da casa do pai dele. Vamos combinar, entendeu? O Buda não é tão hippie que vai que vai para Woodstock. Ele vai na verdade renunciar a uma outra coisa, que é renunciar ao ego dele. Agora, renunciar ao ego, não quer dizer jogar fora o ego. Não quer dizer abandonar, não quer dizer jogar na lata de lixo. Senão ele não voltava para ensinar as pessoas.
Como é que ele ensina as pessoas? Como é aquele negócio da estrela, que a aí ele se iluminou? Como é que é isso, esse momento singular? Isso é o satori?
- Pode ser. Naquele momento em que ele viu a estrela, o olho dele se abriu e ele pode ver o presente, passado e o futuro.
Você já teve satori?
- Sei lá, eu não! Pode ser o satori já tenha se manifestado através de mim algum dia, pena que eu não estava lá para ver. Isso é um problema.
O Harada tem uma conversa que ele diz isso, que você nunca está para ver, você nunca pode ver, porque você nunca está para ver.
- Mas tem uma coisa que o Tokuda fala da doença do zen que é isso, chega uma hora que você fica tão cansado, que diz eu chego quase lá e nunca vejo isso acontecer. Porque chegar quase lá é isso, você senta, e coisa e tal, e de repente esta quase lá. Aí de repente se você realmente você chega lá, você não chega porque você não está lá para ver. Ai chega uma hora que o praticante fica cansado disso e resolve estar lá para ver. E aí a doença do zen quando você começa a acredita que você despertou. É muito lamentável.
O Shunryu Suzuki, na hora da morte, alguém perguntou se ele tinha se iluminado ele disse que não sabia. Na hora da morte...
- Esse não saber é maravilhoso! O Dainin Katagiri Roshi que foi aluno do Masumi, se não me engano, foi câncer, ele morreu há pouco tempo atrás. Ele começou a observar que próximo da hora da morte dele que estava chegando muitos alunos. E todo mundo mantendo aquele silêncio respeitoso, ai ele olhou aquela cena toda e ai de repente ele começou a sacudir os braços e ahhhhhh, aí o pessoal disse o que é que foi? Eu estou observando se vocês vieram ver como é que morre um mestre zen, eu quero dizer para vocês que eu continuo sendo uma pessoa, eu estou apavorado com isso. Então não me encham a paciência, deixam eu morrer em paz, galera. Pelo amor de deus, entendeu. E aí ele pode ficar tranquilo e quieto. Essa coisa que é importante, o que é iluminação?
É importante ler os sutras, ler Dogen, reler textos como Sandokai o Hokyo Zanmai..., o Sutra do Coração, quer dizer, por além da recitação, é importante estudar os sutras ou é coisa para monge?
- Coisa para monge é aprender a deixar de ser monge. Mas o que eu acho importante é o seguinte, o Zen não é iconoclástico, no sentido assim de queimar imagens e sutras. A questão é o seguinte, existe aquilo que Thich Nhat Hanh chama de boa nutrição e má nutrição. A gente é que se preocupar com a nutrição mental da gente também. Já que a gente vai ler mesmo, a gente vai ver qualquer coisa, a gente vai ver filmes, a gente vai estar no mundo da cultura da gente. É legal você ter coisas que sejam maneiras e saudáveis para você ler, o sutra, um livro, uma interpretação, eu sempre prefiro que a pessoa leia o sutra. Eu acho que o sutra é um contato que você tem com o mestre, aquilo vai te colocar dúvidas, vai, mas é o teu caminho, você vai entender isso. Tem muita gente que gosta só de ler comentarista, tipo assim, o cara vai ler um livro por alto. Não tem muito sentido que aquilo serve para gente. Mas tudo bem, às vezes é uma maneira de você chegar na coisa. Mas o importante é você poder oferecer para sua mente, para o seu ego mesmo, um alimento saudável, não faz mal ler. Agora, o problema novamente é quando aquilo se torna a atividade principal do indivíduo, se ele acha que ele ler é melhor do que fazer zazen, é complicado porque a leitura é mais uma distração legal para seu ego.
Porque o Dogen escreveu tanto, então?
- Porque ele estava preocupado com a transmissão, e a aí tem uma questão muito importante. O que é que o Dogen percebeu? Você tem que pensar o meio cultural em que ele estava inserido. Ele estava no caldo da cultura japonesa que não é uma cultura budista. Então as pessoas estudavam muito o budismo. Mas ele percebia que quem estudava muito o budismo, não queria ter nada a ver com prática. As pessoas continuam totalmente alienadas da prática. Então o Dogen foi um pouco protestante nesse ponto de vista, ou seja, ele tentou voltar para a essência da prática, é aquela coisa assim, voltar para ficar a essência da prática, o zazen. Mais aí ele percebeu o seguinte: que para isso acontecer o sujeito precisava ter um contato com o professor, ele não podia fazer isso sozinho, e aí ele percebeu depois uma segunda outra coisa que ele já sabia: que ele era impermanente, que ele ia morrer. E ele pensou assim: nem sempre vai haver um professor disponível para aquela pessoa. Mas se eu escrever o meu coração para o seu coração, pode ser que alguém consiga estabelecer um contato comigo através daquele escrito. É uma coisa meio estranha da gente pensar. Que a gente pensa num escrito para gente entender. Mas se você olhar para o Shobogenzo ele não é para ser lido como um tratado para você entender, ele é para ser praticado, você tem que sentar em zazen, e aí você vê, Kodp Saiwaki Roshi sentava em zazen com o Shobogenzo durante a noite. Ele passava a noite sentado em zazen com o Shobogenzo. Ele não estudava o Shobogenzo, ele sentava em zazen e lia durante o zazen. Então aquilo ali é como se fosse uma incorporação do Dogen você tem um texto, e aí o Dogen senta com você e conversa com você. Do jeito que ele escreve ele está falando com você, ele não esta... e ai voltamos... ele está falando, falando para você. E aí você vai estar com Dogen em pessoa na sua frente. É uma chance que ele te dá.
O Tokuda fala numa entrevista que um dos textos que mais emocionou ele no Shobogenzo foi o Zanmai o zanmai. Qual seria o seu?
- O que mais emocionou, foi o Genjo Koan Na verdade de emoção, embora do ponto de vista também assim de gostar, um gostar mais racional seja daquele capítulo que fala exatamente do koan do Bodhisatva da grande compaixão, mas em termos emocionais foi o Genjo Koan o que mais me capturou.
E esses textos assim, canônicos, o Sandokai, o Hokyo Zanmai é bom lê-los, ficar lendo?
- Eu acho que é interessante. É que nem o sesshin, só interessa se você praticar. Porque se você não praticar aquilo não vai fazer o menor sentido. Na verdade, aquilo ali é um..., cada mestre desses, se você observar bem esses textos são de mestres que até recitam na linhagem da gente. São pessoas que praticaram e foram mestres na nossa linhagem. Então aquilo ali é um testamento dos caras, na verdade é um testamento, é como se fossem assim, eles tentam condensar no escrito como que eles viviam na prática. Pode ser interessante ler se você praticar. Que aí você de repente aquilo te bate na cabeça.
Um minuto para terminar a entrevista. Fala o que você quiser.
- Acho que eu prefiro ficar em silêncio.... Na verdade o que quero dizer que eu tenho muita fé. Tenho muita fé no zazen. E eu acho que as pessoas deveriam praticar o zazen com muito afinco porque realmente funciona. Funciona depois de uns dez ou vinte anos.